segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Retrospectiva 2012 - Os dez melhores filmes do ano


Foi um bom ano. O balanço final da temporada 2012 é muito positivo. No entanto, dos dez filmes que integram o TOP 10 de Claquete, seis são lançamentos originais de 2011 que só chegaram em telas brasileiras este ano. A predominância das produções de 2011 na lista, no entanto, é mais sintoma das estratégias dos estúdios de concentrarem os chamados lançamentos de Oscar no início do ano seguinte. Outro aspecto que chama a atenção é a ausência de blockbusters no Top 10. Há, na verdade, um. Mas é um blockbuster que traz consigo o elemento surpresa. Com os aguardados lançamentos de Batman e 007, não se poderia esperar que uma comédia com um ursinho falante conseguisse roubar destes filmes uma vaga no top 10. Em parte pela decepção de muitos lançamentos aguardados e em parte por uma safra adulta de filmes independentes fortes e pulsantes, o top 10 dos melhores filmes de 2012 é bastante diverso e multifacetado. Há uma produção argentina, uma francesa, uma iraniana e duas inglesas. Quatro produções americanas e outra coproduzida com o Canadá. Diretores consagrados como David Fincher e David Cronenberg marcam presença na lista, mas dividem espaço com nomes ainda em consolidação como Steve McQueen, Michel Hazanavicius e Nicholas Jarecki.
Filmes que apostaram em uma estética ousada e em uma renovação da linguagem cinematográfica como A separação, Precisamos falar sobre o Kevin e Shame marcam presença na lista. Filmes bem realizados e com propostas revisionistas sobre suas referências, como O artista e Um método perigoso, também se destacam.
Sem mais delongas, os dez melhores filmes lançados comercialmente no Brasil na avaliação de Claquete:

10 – A separação (Jodaeiye Nader az Simin, Irã 2011), de Asgar Farhadi

A inteligente e impactante fita de Asghar Farhadi tem o mérito de ser, ao mesmo tempo, universal sobre conflitos essencialmente humanos e particular da realidade iraniana. Não é uma equação fácil, mas que Farhadi com os préstimos de seu excelente par de protagonistas (Peyman Maadi e Leila Hatami) alcança com um trabalho pulsante, em suas formulações narrativas, e angustiante, em suas resoluções dramáticas. Um testamento da força do cinema de ideias.



 9 – O artista (The artist, EUA/FRA 2011), de Michel Hazanavicius
Mudo, em preto e branco e sobre o cinema mudo e em preto e branco. O artista se esmera na nostalgia e na metalinguagem para proporcionar uma das grandes experiências cinematográficas do ano. Um filme que nasceu para ser visto no cinema por uma geração que não viveu na época retratada pelo filme de Michel Hazanavicius. Encantador e emocionante, o maior mérito de O artista é desarmar expectativas e cativar com sua genuína presença de espírito.



 8 – A negociação (Arbitrage, EUA 2012), de Nicholas Jarecki
Wall Street continua rendendo grandes dividendos cinematográficos. Mas A negociação é mais do que uma investigação da vida de ricos e poderosos. É um estudo algo vertiginoso de um homem que não sabe que está no limite até ultrapassá-lo. Richard Gere, vivendo um magnata das finanças em queda livre rumo à desgraça, tem o melhor momento de sua longeva carreira neste filme que merece ser descoberto.



7 – Elefante branco (Elefante blanco, ARG/ESP 2012), de Pablo Trapero
O cinema argentino parece favorecido por uma espécie de cota no TOP 10 do ano de Claquete. Trata-se apenas de uma impressão. O vigor do cinema portenho se confirma perene a cada ano. Pablo Trapero, um dos expoentes dessa cinematografia, volta a provocar palpitações com um drama tenso e poético sobre a violência nas favelas do país e, ainda, sobre a crise da fé. Da instituição igreja e também do homem que a move. 


6 – Procura-se um amigo para o fim do mundo (Seeking a friend for the ende of the world, EUA 2012), de Lorene Scafaria
A melancolia não seria a matéria prima ideal para uma comédia romântica. Mas esse precioso filme da diretora Lorene Scafaria não é uma comédia convencional. Com o apocalipse como pano de fundo, Procura-se um amigo para o fim do mundo fala sobre o poder transformador do amor. E o faz de maneira cativante e sensível. Um filme agridoce que faz do final triste, feliz e que nos desperta o desejo de amar, amar, amar!


5 – Um método perigoso (A dangerous method, EUA/CAN 2011), de David Cronenberg
Um Cronenberg verborrágico que mergulha nas entranhas da psicanálise, chancela Freud e se maravilha com a humanidade de Jung. O filme acompanha a formação de uma triangulação intelectual que se mostrou fundamental para o estabelecimento da psicologia moderna e o faz de maneira inteligente, despudorada e muito sofisticada.



4 – Ted (EUA 2012), de Seth MacFarlane
A comédia do ano é também um dos filmes mais originais e inteligentes produzidos no mainstream hollywoodiano nos últimos tempos. Mas de tão divertido, poucos notam essa condição. O filme do ursinho maconheiro e desbocado é uma crítica atroz a seu próprio público em um dos exercícios de metalinguagem mais bem feitos de todo o sempre e que demonstra que Seth MacFarlane, mais do que um legítimo entertainer, é alguém que tem algo dizer e sabe fazê-lo de maneira criativa.



3 – Precisamos falar sobre o Kevin (We need to talk about Kevin, ING 2011), de Lynne Ramsay
Com uma narrativa engenhosa e algo inquietante, Ramsay conduz uma trama de vertigem emocional e não poupa seu público das dúvidas. Sem respostas fáceis, esse drama sobre a relação de uma mãe e seu filho, que virá a ser o responsável por uma chacina em uma escola, se ergue sobre as vultosas sombras e incertezas da existência humana. Investigativo, doloroso, contínuo e sublime. Precisamos falar sobre o Kevin é daqueles filmes que se perpetuam em nossa memória. Muito pelo tema ruidoso, mas principalmente pela excelência com que é tratado pela obra.



2- Os homens que não amavam as mulheres (Millennium – The girl with the dragon tattoo EUA 2011), de David Fincher
David Fincher fez um trabalho tão minucioso e grave que o frio sueco é palpável para o espectador. Mas esse não é o maior mérito da versão americana do best seller que abre a trilogia Millennium. Fincher sublinha os conflitos dos personagens principais (Mikael e Lisbeth), e a complexa relação que eles desenvolvem entre si, e faz destes o carro chefe da trama e não o instigante caso que move a narrativa. Um movimento que acresce profundidade ao filme que, independentemente disso, se configura também em entretenimento inteligente e refinado.


1- Shame (ING 2011), de Steve McQueen
Eis um filme que agrega ousadia estética à relevância dramática. Renunciando qualquer academicismo e usando o corpo de Michael Fassbender como um discurso artesanal, valendo-se muito de sua experiência como artista plástico, McQueen realiza um filme impactante sobre a superficialidade das relações interpessoais nos tempos modernos. Do maniqueísmo de nossas ações ao egoísmo de nossas reações, Shame concentra sua munição no mundo de Brandon, um homem viciado em sexo que no curso do filme toma ciência da gravidade de seu quadro.
Uma obra demolidora, pulsante e artisticamente atraente destinada ao culto, mas também uma radiografia inequívoca de nosso tempo.


sábado, 29 de dezembro de 2012

Retrospectiva 2012 - Claquete destaca o melhor do ano

Os cinco melhores trabalhos de direção do ano


Asghar Farhadi (A separação)


Ben Affleck (Argo)

Steve McQueen (Shame)


David Cronenberg (Cosmópolis)

Lynne Ramsey (Precisamos falar sobre o Kevin)


Os cinco melhores roteiros do ano
Argo por Chris Terrio
Um método perigoso por Christopher Hampton
Ted por Seth MacFarlane
Moonrise kingdom por Wes Anderson e Roman Coppola
A negociação por Nicholas Jarecki

As cinco melhores trilhas sonoras
O artista por Ludovic Bource
Cavalo de guerra por John Williams
Drive por Cliff Martinez
Moonrise kingdom por Alexandre Desplat
As aventuras de Pi por Mychael Danna 

As cinco melhores fotografias
007 – operação Skyfall por Roger Deakins
Cavalo de guerra por Janusz Kaminski
Drive por Newton Thomas Siegel
Shame por Sean Bobbitt
As aventuras de Pi por Claudio Miranda

As cinco melhores edições
O artista por Michel Hazanavicius e Anne-Sophie Bion
Precisamos falar sobre o Kevin por Joe Bini
A separação por Hayedeh Safiyari
Virada no jogo por Lucia Zucchetti
Os homens que não amavam as mulheres por Kirk Baxter e Angus Wall


As cinco melhores atuações masculinas  

Jean Dujardin em O artista

Richard Gere em A negociação


George Clooney em Os descendentes

Michael Fassbender em Shame

Rodrigo Santoro em Heleno


As cinco melhores atuações femininas

Rooney Mara em Os homens que não amavam as mulheres

Tilda Swinton em Precisamos falar sobre o Kevin


Naomi Watts em O impossível

Michelle Williams em Sete dias com Marilyn

Gleen Close em Albert Nobbs


As cinco melhores atuações coadjuvantes masculinas

Ezra Miller em Precisamos falar sobre o Kevin & As vantagens de ser invisível

Javier Bardem em 007 – operação skyfall

Albert Brooks em Drive

Nanni Moretti em Habemus papam


Garrett Hedlund em Na estrada


As cinco melhores atuações coadjuvantes femininas

Jessica Chastain em Histórias cruzadas


Shailene Woodley em Os descendentes


Carey Mulligan em Shame


Keira Knightley em Um método perigoso


Bérénice Bejo em O artista 



Os dez filmes que não entraram no TOP 10 do ano de Claquete, que será publicado neste domingo (30), em ordem alfabética: 

007 - operação skyafall (Skyfall, EUA 2012), de Sam Mendes
Argo (EUA 2012), de Ben Affleck
As aventuras de Pi (Life of Pi EUA 2012), de Ang Lee
Cavalo de guerra (War horse, EUA 2011), de Steven Spielberg
Cosmópolis (CAN/EUA 2012), de David Cronenberg
Drive (EUA/DIN 2011), de Nicolas Winding Refn
Moonrise kingdom (EUA 2012), de Wes Anderson
O homem da máfia (Killing them softley, EUA 2012), de Andrew Dominik
O homem que virou o jogo (Moneyball, EUA 2011), de Bennett Miller
Virada no jogo (Game change, EUA 2012), de Jay Roach

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Crítica - A negociação


Thriller inteligente e sofisticado

Não é de hoje que os thrillers financeiros rendem bons filmes. Nos últimos anos tivemos a sequência de Wall Street, Poder e cobiça (2010) e Margin Call – o dia antes do fim (2011) abrilhantando esse subgênero cada vez mais reluzente. 2012 parece ser o ano de A negociação (Arbitrage, EUA 2012). Surgido no festival de Sundance deste ano, o filme tem a felicidade de ostentar a melhor atuação da carreira de Richard Gere, que aos 63 anos já tem uma carreia com pelo menos 40 anos. Não é pouca coisa. Mas o filme de estreia na direção de Nicholas Jarecki não merece ser lembrado pelo rótulo (já lisonjeiro) de melhor trabalho da carreira de Richard Gere. O filme tem muito mais a apresentar. Filho de corretores de Wall Street, Jarecki escreveu o roteiro de A negociação e foi buscar financiamento para o filme. A proposta é mais ousada do que a trama que move Margin call, por exemplo, a qual seu diretor e roteirista J.C  Chandor detém referencial semelhante ao de Jarecki.
A negociação acompanha de muito perto uma semana decisiva na vida de Robert Miller (Gere). Um magnata do mundo financeiro que, como muita gente em Wall Street, perde dinheiro com investimentos megalomaníacos. Para reaver as perdas de uma aposta errada, Miller tenta vender sua empresa enquanto disfarça o rombo financeiro com dinheiro emprestado e movendo fortunas de um fundo para outro de maneira a ludibriar auditorias independentes indispensáveis para aquisições desse porte. A pressão estoura de vez quando ele se envolve em um acidente automobilístico, fatal para sua amante, e escapa da cena que passa a ser automaticamente de um crime. Em seu encalço, um detetive com bom faro para tipos escorregadios vivido por Tim Roth. Ao relacionar a tensão oriunda da negociação envolvendo o império financeiro de Miller à investigação da qual ele é alvo, Jarecki poderia facilmente se perder. Não é o que ocorre. A negociação ganha estofo dramático e se costura em um thriller francamente claustrofóbico.

Gere brilha como Robert Miller, um leão de Wall Street que não se enxerga como tal

A visão de mundo de Miller, em suas distorções inebriadas pelo poder, é outro ponto forte do filme. O confronto entre a moral usual e aquela esfumaçada pela condição de Miller é um dos desagravos de A negociação enquanto obra cinematográfica. Não que o filme seja moralista ou moralizante. Longe disso! A negociação é um thriller inteligente e sofisticado que torna a iluminar um mundo que sempre nos provoca um misto de fascinação e asco, mas que a cada incursão nos surge mais humano. Nesse sentido, Richard Gere é um providencial ás. Carismático e charmoso, ele alcança aqui efeitos similares ao obtido por Michael Douglas no primeiro Wall Street. Mas com um diferencial. Ele compõe seu Robert Miller como um homem que se vê como um homem bom, levado pelas circunstâncias; diferentemente do Gordon Gekko de Douglas.
Gere dá relevo à consternação emocional de seu personagem e permite que o público se identifique com um homem bastante peculiar em suas particularidades. Um tour de force que congrega sutileza e expressividade.
Enfim, a negociação entre Gere e A negociação, o filme, rende frutos a ambos. Mas, no limiar, é mesmo Gere quem se sai melhor desse sedutor negócio.

Crítica - Virada no jogo



Aula de teoria política

A HBO se notabilizou pela produção requintada de filmes que enobrecem o espaço da TV por assinatura. Dentro desse filão, aqueles sobre o jogo político, do qual faz parte esse excelente Virada no jogo (Game change, EUA 2012), ocupam lugar de destaque. O filme se baseia em um livro reportagem de Mark Halperin e John Heilemann sobre os bastidores da campanha republicana à presidência dos EUA em 2008. Sobre como a candidatura McCain ergueu o fenômeno Sarah Palin para medir forças com o fenômeno midiático Barack Obama e de como essa solução improvisada descarrilou uma campanha difícil desde seus primórdios.
Jay Roach, que assumiu a direção de outro notável filme da HBO sobre arremedos políticos quando Sidney Pollack se adoentou (Recontagem), reveste Virada no jogo de tensão, ainda que seu público tenha vívida a lembrança do que aconteceu. Com a sombra de Obama realçada vez ou outra, o filme se incumbe mais do que qualquer outra coisa de humanizar a figura de Sarah Palin – personagem tão cativante quanto demonizada. Nesse sentido, a interpretação de Julianne Moore salta aos olhos. A atriz faz mais do que reproduzir maneirismos da ex-governadora do Alasca, ela investe em uma composição rica que permite o vislumbre de uma mulher de convicções firmes, mas despreparada para o traquejo político de uma corrida eleitoral das proporções da disputa presidencial americana. Sarah Palin não é retratada como uma vítima das circunstâncias, tampouco como uma caricatura. Por se infiltrar tão avidamente nas noções que rodeiam uma personalidade política tão controversa, Virada no jogo se ergue como um estudo de personagem altivo e eficaz. Impressionável e com baixa formação cultural, a Sarah Palin que se testemunha em Virada no jogo é uma mulher egocêntrica que aconteceu pelos motivos errados.

Moore como Palin e Harris como McCain: atores que vão além da simples imitação


O brilhantismo de Virada no jogo, no entanto, não se circunscreve ao retrato que faz de sua protagonista. As articulações políticas e o poder reativo de uma campanha que precisava desconstruir um mito moderno em formação são outros atrativos desse filme que se posiciona como uma polivalente aula de teoria política.
Das maquinações de bastidores, as intensas preparações para debates, à escolha dos entrevistadores, tudo que se vê em Virada no jogo é justificável dentro de sua proposta narrativa. Eis um filme sem gorduras e paliativos, de ação ininterrupta movida à inteligência de seu texto e de sua audiência.
Um acréscimo precisa ser feito em nome do elenco de apoio. À parte o colosso de atuação provido por Julianne Moore, Ed Harris, Woody Harrelson, Sarah Paulson, Peter MacNicol e Jamey Sheridan brilham nas representações que fazem dos personagens envolvidos na trama.
Harris demonstra a habitual competência na pele de McCain, retratado aqui como um homem que quer sim servir ao país, mas que tem a exata noção de que precisa ganhar a disputa pela presidência para fazê-lo melhor. Harrelson, por seu turno, dá um show na pele de Steve Schmidt, o principal conselheiro político da campanha de McCain e um dos “criadores” de Sarah Palin.
Virada no jogo é cinema maiúsculo. O fato de ter sido lançado diretamente na TV não o torna menor ou menos digno de louros. Pelo contrário, apenas ratifica a TV, e a HBO em particular, como polo de criatividade e vigor artísticos.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Crítica - As aventuras de Pi


A melhor estória

 O ator Suraj Sharma e o tigre digital Richard Parker são pontos fortes do belo e sensível As aventuras de Pi, um filme sobre resiliências da vida e da fé
 
Existem filmes que são capazes de nos tocar profundamente. As aventuras de Pi (Life of Pi, EUA 2012) é um desses filmes. Adaptado da obra homônima de Yann Martel, o filme de Ang Lee é um tratado sobre fé e, também, sobre as circunstâncias em que nos relacionamos com esse poderoso e místico elemento. Não é possível pensar em um cineasta mais adequado para conceber visualmente a extraordinária estória retratada em As aventuras de Pi do que o taiwanês Ang Lee. De forte sensibilidade e com uma vocação extraordinária para envernizar estórias intrincadas e potencialmente complexas, Lee confere leveza e maravilhamento ao filme.
Pi (vivido pelos atores Gautam Belur, Ayush Tandon, Suraj Sharma e Irrfan Khan em diferentes fases da vida) desde cedo demonstrava apreço fora do comum pela religiosidade. Do hinduísmo ao cristianismo, todas as orientações religiosas fascinavam o jovem Pi. Quando seu pai, um homem cético em relação à religião, decide sair da Índia em busca de um melhor provimento para sua família, Pi e seus familiares embarcam em um navio cargueiro com destino ao Canadá, onde seu pai deseja vender os animais que mantinha em um zoológico. O navio, porém, naufraga. Pi é o único sobrevivente. Humano, diga-se. Estão com ele em um bote uma zebra, uma hiena, um orangotango e Richard Parker, um tigre de bengala cujos simbolismos extravasam qualquer articulação mais racional.  
É da convivência entre Pi e Richard Parker, e da necessidade dela por diferentes razões, que As aventuras de Pi extrai sua matéria prima: um filme sobre sobrevivência. Do corpo físico, da organização emocional, mas principalmente do poder da fé. Não que Pi não questione seu Deus, ou deuses – uma  vez que esse conflito surge pacificado para ele que, a posteriori, em uma entrevista que faz com um escritor interessado em sua história diz que a fé tem muitos quartos e que se serve também da dúvida.
Pi, na encarnação adulta vivido pelo ator Irrfan Khan, conta sua história com indesviável emoção ao escritor vivido por Rafe Spall e sempre ressaltando a importância de Richard Parker para sua sobrevivência.
 
Relatos: Pi trasmite sua vivência e sua visão de mundo a um escritor em busca de uma boa estória

É justamente esse recorte o que mais interessa a Ang Lee. Ora, não importa o que de fato tenha sido crucial para a sobrevivência de Pi e sim o que ele acredita que tenha sido. Até mesmo porque, nas circunstâncias em que ele se encontrava como desviar uma coisa da outra? Mas o tratado sobre fé brilhantemente arredado por Lee não se esgota aí. Ao terminar de contar sua história, prometida por um terceiro ao escritor ser do tipo que “faz você acreditar em Deus”, Pi lhe oferta uma outra história. Mais aguda no tom trágico e menos esperançosa em seu cerne e questiona seu interlocutor a respeito de sua preferência. À plateia é feito o mesmo desafio. A fé pode ser múltipla, mas jamais excede o campo pessoal. A maneira como interiorizamos isso é que nos define e define nossas experiências. Essa lição, tão bela e sutilmente ministrada por esse filme tão robusto e tão simples simultaneamente, é potencializada no olhar do espectador. Cabe a ele, em última análise, testemunhar no que crê.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Retrospectiva 2012 - Os dez personagens do ano


10 – David (Michael Fassbender) em Prometheus

O filme de Ridley Scott pode não ter sido a sensação que se anunciava, mas o humanóide vivido por Michael Fassbender com um fino gosto por clássicos do cinema é daqueles grandes achados da ficção científica. David é pura filosofia, mas é, também, um tratado pop em um filme que nunca alcança suas potencialidades.

9 – Raoul Silva (Javier Bardem) em 007 – Operação Skyfall

Sexualmente ambíguo, amoral em sua busca por vingança e tragicamente shakespeariano em suas motivações, Silva (oxalá o mais cativante de todos os vilões de 007) é um personagem que se redime na composição matadora do espanhol Javier Bardem. Outro ator talvez não desse um verniz tão bom a um vilão de tintas tão pasteurizadas.


8- The driver (Ryan Gosling e Mel Gibson) em Drive e Plano de fuga

Tão semelhantes e tão distintos. Ambos sem nome, mas com talentos impensáveis para autônomos na arte do crime mereciam a distinção irmanada nessa lista. Em Drive, Ryan Gosling faz um tipo silencioso em um noir que reverencia os filmes b americanos dos anos 70. Já em Plano de fuga, Gibson faz um tipo que parece saído da pena de Tarantino, um fanático pelo período que Drive homenageia. Ambos os personagens são guiados por um sentimento de honra algo torto que move a ação de seus respectivos filmes. Esses “estranhos sem nome” certamente deixaram suas marcas em 2012.


7- Dean Moriarty (Garrett Hedlund) em Na Estrada

Um verdadeiro vulcão de sexualidade. É Dean quem fervilha toda a razão de ser de Na estrada. Desde a inspiração que fez com que Sal Paradise escrevesse em primeiro lugar, até a torrente de paixões pelas quais os aventureiros atravessaram ao redor dos EUA. Na construção inspirada de Hedlund, o Dean das telas não é menos catalisador. É um poderoso ímã para os olhos e uma montanha de atração para todo o resto.


6- Chayenne (Sean Penn) em Aqui é o meu lugar

Um misto de Ozzy Osbourne e Gene Simmons da maneira mais lesada possível. Essa é uma descrição aproximada desse roqueiro perdido vivido com esplendor e graça por Sean Penn. Chayenne é daqueles enigmas que o cinema vez ou outra apresenta. Um personagem tão interessante quanto o próprio filme e que indubitavelmente, em alguns momentos, até mesmo prevalece em relação ao filme. Com ar infantil, Chayenne busca paz interior e também com seu passado no curso de Aqui é o meu lugar, mas o faz com maneirismos e peculiaridades que valem o ingresso.

5- Eric Packer (Robert Pattinson) em Cosmópolis

A personificação do capitalismo em toda a sua frieza, volatilidade e esplendor. Eric Packer é um dos personagens mais marcantes de 2012 e, na face desapaixonada de Robert Pattinson, cristalizou toda a falência (e o sucesso híbrido a ela) do sistema que ergueu o mundo como o conhecemos.  

4 - Lisbeth Salander (Rooney Mara) em Os homens que não amavam as mulheres

A personagem não é exatamente de 2012, nem mesmo originária do cinema. Mas a versão americana de Os homens que não amavam as mulheres brindou-nos logo em janeiro de 2012 com uma Lisbeth renovada, mais crua, violenta, emocional e ainda assim a Lisbeth que nos cativou nos livros. Uma personagem tão icônica melhorada não poderia deixar de marcar presença na lista.

3 - Kevin (Esra Miller e Jasper Newell) Precisamos falar sobre o Kevin

A realidade fez com que Kevin subisse na lista de Claquete. O personagem, fascinante em perspectivas mórbidas que tanto nos acentuam, já marcaria presença na lista. Eis outro personagem com raízes nos livros, mas que o massacre de Newton há poucas semanas fez com que aumentasse a necessidade de falarmos sobre ele. E muito!

2- Brandon (Michael Fassbender) em Shame

A melancolia da vida moderna cai como uma luva em um personagem que se esconde em seus vícios como tantos fazem nessa vida atribulada que vivemos. Brandon é prisioneiro de sua liberdade e padece diariamente deste mal que não conseguimos nem mesmo diagnosticar. Seu flagelo emocional se contrapõe a bem aventurança material de sua vida em um aspecto que torna o personagem paradoxalmente banal e único.

1- Ted (voz de Seth Macfarlane) em Ted

Ele “causou” até com um nobre deputado brasileiro. Maconheiro, boca suja, misógino, mas camarada pra caramba com seu dono – vivido por Mark Wahlberg – Ted foi o personagem de 2012. Hilário, o ursinho mais divertido desde os ursinhos carinhosos (mas não diga isso para ele), garantiu o topo nessa lista do mesmo jeito que foi garantindo suas promoções no trabalho que mantinha inacreditavelmente em um supermercado.

Crítica - Quatro amigas e um casamento



Entre estereótipos e o lugar comum

Quatro amigas e um casamento (The bacharolette, EUA 2012) é um filme independente com alma de blockbuster. Não porque de seu elenco façam parte alguns nomes com trânsito em Hollywood como Kirsten Dunst ou James Marsden, mas porque todo o arranjo dramático do filme, dirigido e roteirizado por Leslye Hedlund gira em torno de clichês que já começam a ser superados mesmo entre comédias de estúdio. O barato de Quatro amigas e um casamento, péssimo título nacional por sinal, talvez seja focar na complexa relação que amigas travam com amigas. A linha entre admiração e inveja é tênue e o filme de Hadlund tem o mérito de apontar para o egocentrismo das relações de amizade. É um tal de “um cada por si”, que o espectador fica meio perdido sem saber pelo que efetivamente torcer em vistas de um final feliz. É lógico que Quatro amigas e um casamento apresenta o necessário final moralizante, mas mesmo este pouco entorpece.
Becky (Rebel Wilson) anuncia para as amigas desde os tempos de colegial que irá casar. Gorda, ela não se encaixa – dentro dos preceitos sociais vigentes – naquele perfil de candidata a ter seu príncipe encantado. O que gera todo tipo de repercussão nas amigas que, cada qual com seu quadro de insegurança, manifestarão dificuldade em lidar com o fato da “cara de porco”, como Becky era conhecida nos tempos de colégio, casar antes de cada uma delas.

Alcoviteiras do bem: as amigas de Becky dão vazão a todo tipo de inseguranças às vésperas do casamento da amiga


Kirsten Dunst faz a executiva com um pé na frigidez que obedece àquela caracterização já obsoleta da mulher que objetiva o sucesso. Lizzy Caplan, atriz de ótimo timing cômico, se repete como Gena, a “vagaba” da turma que nunca superou a traumática separação do grande amor de sua vida e Isla Fischer, a melhor coisa do filme, faz a BBB (bonita, burra e boazuda) Katie. Fútil até a alma, mas aparentemente a menos incomodada com a felicidade de Becky.
As três, ora conscientemente, ora inconscientemente, farão de tudo para sabotar o “momento” de Becky. É daí que surge o humor da fita de Leslye Hedlund. Não se engane, o filme diverte. Mas opta por divertir pouco, já que existe a opção por seguir motes talhados, por exemplo, em Se beber, não case (2009). Tão pouco existe o objetivo de aprofundar o drama dos personagens. Contenta-se com a superfície que, afinal, fornece as circunstâncias para o humor que se ambiciona.