sábado, 5 de abril de 2014

Crítica: Ninfomaníaca - volume II

Sodomizando o público

Ninfomaníaca – volume II (Nymphomaniac: volume II, FRA/ALE/DIN 2013) é, em muitos sentidos, um filme distinto do primeiro volume. Mas falemos primeiro das similaridades. Tanto lá como cá, Von Trier provoca e frustra o público. Seja em uma anunciada suruba com homens negros, seja na incipiência com que investiga Joe (interpretada por Stacy Martin e Charlotte Gainsbourg) ou na profusão de metáforas inortodoxas que lança mão na figura de Seligman (Stellan Skarsgard), cuja função na narrativa se entremeia entre fazer as vezes do crítico de cinema (em um deboche divertidíssimo do cineasta), do público e, também, do alter ego de Von Trier.  
Às diferenças, então. Como previsto na crítica do blog do volume I, Von Trier se aproxima mais de Joe nesse segundo tomo. As inquietações físico-emocionais da protagonista são circundadas com maior zelo pelo cineasta que se mostra menos hermético e mais dado aos clichês que gravitam o senso comum da sexualidade. O que não quer dizer que Von Trier não faça provocações aqui e ali como quando faz com que o público se simpatize (com muito fundamento) com um pedófilo. Aliás, esta cena já entra para a galeria das melhores de 2014.
Ninfomaníaca –volume II parece enredar a tese de que o sexo é expressão definitiva para a identidade pessoal. O filme é substancioso em elaborar questionamentos irresolutos sobre fetichismos e sadomasoquismo. O estreitamento entre dor e prazer, em Von Trier, é algo muito menos sórdido e complacente do que as chibatadas que K (Jamie Bell) em Joe sugerem.
O desejo escravagista também tem seu espaço e ele pode se manifestar tanto no pedófilo oculto como na ânsia por humilhação que move a relação entre Jerôme e Joe.

Joe em sua busca por satisfação: o desejo por uma experiência radical e inédita lhe aproxima do orgasmo mais puro e metafísico já experimentado

Diferentemente do primeiro volume, são menos os arquétipos e mais os personagens, que articulam a trama. Uma bem vinda mudança de tom e que complementa, ou antecipa, uma mudança radical proposta pelo cineasta na última cena do filme. Pouco antes desta surgir, Von Trier prepara seu público em uma fala de Seligman: “As vezes, tudo o que você precisa é de uma mudança de ponto de vista”. Dito e feito. Apropriando-se de um discurso feminista ressentido, ele surpreende a plateia ao adensar a lógica da impossibilidade de amizade entre homens e mulheres. Radicalizando totalmente a dialética da trama com uma descarga de ironia e cinismo em face de uma atitude condescendente surpreendentemente pueril de um dos personagens.
O mecanismo obriga o público a rever toda a construção dramática que se deu até ali. Enquanto cinema é um exercício estético/ narrativo fascinante.

Por fim, a moral de uma cultura ocidental inflexível e anabolizada em sua relação com o sexo é devassada com rigor e imaginação, dueto possível apenas no cinema de Von Trier. O dinamarquês não se furta a pequenos gestos de malícia como referenciar-se ou incutir humor onde não se poderia concebê-lo, mas mesmo essa masturbação intelectual reforça o status de Ninfomaníaca – volumes I e II de filme robusto, plural, multifacetado e, acima de tudo isso, provocador; ainda que não o seja da maneira que o público projetava. Está aí, finalmente, nessa sodomização ansiada (e muito bem executada) o trunfo definitivo de Von Trier. 

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